Depois de mais de 30 anos de restrições no Brasil à doação de sangue por gays, trans e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), em 8 de maio de 2020, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5543, por sete votos a quatro a maioria dos/das ministros/as do Supremo Tribunal Federal determinou ser inconstitucional a inabilitação temporária desta população para doação de sangue, conforme estabelecida pela Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, e a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), objetos da ADI proposta pelo Partido Socialista Brasileiro.

O relator da ADI 5543, Ministro Edson Fachin, resumiu seu voto sobre a inconstitucionalidade da restrição à doação de sangue por uma população especificamente nomeada, classificando-a como uma ofensa à Constituição Federal no que diz respeito à dignidade humana, ao direito fundamental da igualdade, a uma sociedade livre e solidária, ao bem de todos sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação, além de ser uma afronta à Convenção Americana de Direitos Humanos, ao Pacto de Direitos Civis e Políticos e à Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância.

Seis ministros/as acompanharam o relator Ministro Fachin, admitindo a alegação de inconstitucionalidade. Quatro divergiram.

Foi uma vitória de muitas cabeças, muitas mãos, várias instituições, muitas audiências com ministros da saúde e várias campanhas. Mas para chegar a este ponto, teve uma história de décadas. A decisão marca o fim de uma luta de 20 anos por parte dos movimentos LGBTI+ brasileiros para acabar com o apartheid do seu sangue. A reivindicação foi de que nomear uma população específica em documentos oficiais como sendo inapta para doar sangue é uma generalização que estigmatiza esta população inteira e se remete à noção de “peste gay”. O argumento central é que não é quem a pessoa é que deve ser o critério de exclusão de doação de sangue, e sim o que ela faz e como ela faz em termos de práticas de risco para infecção do seu sangue. Este mesmo critério deve se aplicar a qualquer doador de sangue em potencial, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Acima de tudo, respeitamos e concordamos que todo o esforço deve ser envidado para garantir a segurança do sangue doado e seus derivados e para eliminar o risco de contágio dos receptores dos mesmos por doenças transmitidas pelo sangue. Isto é incontestável. Por outro lado, o que não pode haver são critérios de exclusão baseados no tratamento desigual dos/das doadores/as em potencial. Isto é discriminatório perante a Constituição Federal. E isto foi o entendimento do STF. Nas palavras do ministro Fachin, “Orientação sexual não contamina ninguém, o preconceito sim”.

Aplicou-se o princípio constitucional da igualdade perante a lei sem, porém, colocar em risco a segurança do sangue doado, e sim aumentá-la através de uma restrição que abrange igualitariamente toda a qualquer pessoa que tenha tido relações sexuais ou outras práticas inseguras. Estaremos acompanhando implementação da decisão do STF junto ao Ministério da Saúde e à Anvisa e já provocamos pela segunda vez a Organização Mundial da Saúde sobre a atualização de suas diretrizes para a seleção de doadores/as de sangue.

Sangue doado bom é de quem não tem prática de risco e não tem preconceito. Viva a vitória dos princípios da igualdade e da liberdade!

 

*Toni Reis é diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI+, diretor executivo do Grupo Dignidade e pós-doutor em educação.