Todos nós acompanhamos diariamente a vida de quem amamos. Comemoramos com muita alegria cada conquista dos nossos próximos – amigos e familiares. O valor da vida vai se manifestando nas interações humanas mais profundas, conexões e harmonias. Que coisa mais linda ver as pessoas dando passos na vida, crescendo, amadurecendo, acertando e errando – com a potência da vida em plena solidariedade e afeto.

No momento que vivemos, estamos repletos de desafios para transitar no mar de profundas tristezas coletivas. Mas afinal, por que muitos de nós temos dificuldades para encarar nosso sofrimento coletivo?

Em reunião na Organização Mundial da Saúde o novo ministro da saúde simplesmente ignorou a marca de 100 mil mortos, destacando o número de recuperados. Em entrevistas trouxe palavras distorcidas, tentando diminuir gravidade dos números que insistem em bater em nossas portas.

Definitivamente não estamos falando apenas de números, mas de vidas, repletas de sentimentos, afetos, projetos, sonhos. Pessoas que viveram entre nós e foram vítimas de uma pandemia global que foi somada ao descaso estrutural (e de décadas) com o Sistema Único de Saúde.

O SUS foi uma utopia que se tornou realidade. Em seu coração está o envolvimento de ativistas, academia e governo em sucessivos e constantes diálogos – pluralidade que tornou a resposta ao HIV uma realidade que permitiu a vida de muitas pessoas, inclusive a minha.

Não temos mais tempo para batalhas. Precisamos resgatar tudo que já funcionou no passado, começando pela capacidade de escuta e diálogo. São vidas! Estamos falando de 100 mil pessoas, muitas delas poderiam estar aqui entre nós se houvesse escuta. Esse é o momento dos ativistas serem escutados, possuímos amplas vivências e experiência social. As respostas já podem estar em nossa sociedade – como demonstrou a história da camisinha e tantos outras soluções sanitárias que emergiram no social.

Por que insistimos em soluções fáceis e estritamente biomédicas? Foi assim na AIDS nessa última década, e agora tem sido assim com esse governo que tem acreditado em mitos e fakenews como resposta a uma pandemia global. É urgente que o governo retorne hoje o diálogo com a sociedade civil!

Por que insistimos em responder de forma incipiente as desigualdades sociais? Desafios para garantir o direito de acesso à saúde que tanto afetam a população indígena, LGBTQIA+, pessoas negras, mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, transtornos mentais, pessoas com doenças crônicas, pessoas sem recursos financeiros, pessoas de favelas, periferias e comunidades. As maiores lições potentes de transformação que vi na minha vida foram de pessoas desses grupos. Isso não só merece mais atenção, como deveria ser amplamente valorizado. Se a gente conseguir reconhecer, mesmo que por um minuto, essas questões dentro da gente, nos nossos antepassados, na nossa história, no nosso afeto, muita coisa pode mudar hoje. O tempo nos mostra que precisamos atravessar esse momento e despertar essas capacidades solidária em nós e de forma coletiva – ensinos tão bem deixados pelo Betinho, Herbert Daniel, Cazuza, Leonilson e tantos artistas e ativistas lembrados até hoje por nos inspirarem ativismo empático.

Qual parte de nós não se sensibiliza, não escuta e não abre o olho para  realidade? É preciso deixar morrer em nós a insensibilidade diante da dor do outro. É preciso encarar os fatos hoje, começando em nós e expandindo essa reflexão constante para o coletivo num forte quebra-gelo, incluindo o governo. Qual parte de nós insiste em burlar as regras sanitárias? Somos tão “rebeldes” – no sentido de não seguir regras éticas para convívio social – a ponto de não conseguir seguir três ações básicas, como lavar as mãos, ter distanciamento social e usar máscaras? Somos capazes de continuar vivendo num mundo que não garante água para parte da população? Nosso corpo é formado por 70% de água, naturalmente somos equitativos e socialmente somos desastrosos conosco, com o coletivo. Coletivos, ONGs, redes estão numa poderosa corrente solidária que vão desde ações urgentes como distribuição de alimentos e insumos de prevenção ao novo coronavírus até ações de advocacy como a aprovação imediata do PL1462/20 para garantir acesso a prevenção e tratamento da COVID-19 (ANAIDS e GTPI), e também a Marcha pela Vida (Conselho Nacional de Saúde e parcerias).

Precisamos de arte para sustentar os desafios, para apostar na vida. O governo brasileiro precisa acordar hoje, despertar para a importância da valorização dos números como vidas, sem distorções ou frases de efeitos. É preciso envolver ativistas, profissionais de saúde, parentes de pessoas que morreram na resposta à COVID-19. Por fim, urge a necessidade do governo despertar, e somar junto a sociedade civil como possível. O país precisa retomar aposta no social – como algumas empresas têm tido coragem de fazer – e na sociedade que está movimento, no ativismo e artivismo, na comunicação, no diálogo, na escuta e no fazer coletivo, nas potências transformadoras coletivas que somos para quem sabe consigamos, como a fênix, renascer nesses tempos cinzentos.

*Salvador Corrêa é psicólogo, escritor, consultor, sanitarista, ativista vivendo com HIV. Foi coordenador executivo da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA)

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