Na história da medicina, algumas passagens importantes são desconhecidas ou cercadas de mistérios, até serem descobertas pela insistência de pesquisadores, ou até mesmo pelo acaso. Os roteiristas de seriados sobre medicina se desdobram para escrever histórias que surpreendam o grande público, mas a verdadeira história da medicina continua sendo mais emocionante e inédita.

Vivi o início da epidemia de aids, que matava em menos de dois anos quase todos os portadores da doença. Na época, eram realizadas cirurgias para remover tumores estranhos ou colher material para identificar agentes infecciosos. Com essas dúvidas, segui para o Canadá e, posteriormente, para os EUA, onde vi que o tema já era discutido até nas TVs abertas, após a descoberta do HIV em 1984.

Participando de uma sessão clínica no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, Nova York, EUA, ouvi um dos mais famosos cirurgiões oncológicos do mundo e chefe veterano questionar a razão de se operar “pacientes aidéticos”, expondo a equipe cirúrgica à possibilidade de contágio com o sangue desses “pacientes condenados”. O recém-empossado chefe de serviço, Dr. Murray Brennan, não se intimidou, pois era preciso entender o que ocorria com aqueles pacientes que buscavam uma chance para sobreviver.

Ao contar essa história numa palestra, fui agraciado pelo relato sobre a primeira cesariana realizada no Rio de Janeiro numa portadora de HIV, uma jovem de 24 anos de idade, em 1987. A paciente, usuária de drogas, havia sido recusada por outras maternidades e encaminhada para o Hospital Gaffrée e Guinle, no Rio de Janeiro, que estava na vanguarda do estudo dessa doença. O Chefe da Maternidade, Dr. Rogério Rocco, convocou o então estudante de medicina Luis Fernando Correa para pesquisar como proceder com a paciente, numa época sem internet. Missão dada para um estudante de medicina é uma missão que tem que ser cumprida. Essa regra jamais deveria ser mudada.

Apenas os médicos e enfermeiros voluntários atenderam a paciente no ambulatório e em separado, pelo receio do restante da equipe com a “paciente aidética”. No momento do parto, numa sexta-feira à noite, Luis Fernando foi auxiliar do Professor Rocco na cesariana. Improvisaram grossos pijamas cirúrgicos, aventais de plástico, máscaras impermeáveis que dificultavam a respiração e óculos de mergulhador. Tudo correu bem com a mãe e com o saudável bebê, acolhido por pediatras que também estavam descobrindo como lidar com esses recém-natos. Meses depois, a mãe faleceu, e a criança foi criada pelos avós.

Ser portador de HIV não significa uma sentença de morte, e essa realidade é fruto da determinação de pioneiros em vencer medos, preconceitos e contrariar as verdades passageiras da medicina.

É uma felicidade compartilhar essas histórias de médicos incríveis que desafiam o impossível na luta para salvar vidas.

*Alfredo Guarischi é médico.

Fonte: O Globo