A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) publicou, nesse sábado (11), uma nota sobre preocupações relacionadas aos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro. Segundo a entidade, “estes três meses apontam para graves ameaças às políticas de resposta à epidemia do HIV e da aids no Brasil.”

A publicação afirma, ainda, que “lamenta o veto ao Projeto de Lei 10159/2018 que previa a dispensa de reavaliação pericial da pessoa com HIV e aids aposentada por invalidez” e questionou a proposta de fusão da tuberculose, hanseníase, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), aids e hepatites virais numa mesma esfera de gestão no Ministério da Saúde. Confira o texto na íntegra:

A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) vem a público se somar às preocupações do movimento social de aids e de outras vozes da sociedade civil organizada sobre as recentes decisões, decretos e outras medidas tomadas nestes 100 dias de governo Bolsonaro. Para a ABIA, estes três meses apontam para graves ameaças às políticas de resposta à epidemia do HIV e da aids no Brasil.

Uma ameaça emblemática é o impacto potencial da proposta de reforma da previdência para as pessoas que vivem com o HIV e a aids. O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes inseriram um dispositivo no texto da reforma que impede o acesso por decisão judicial a remédios para pacientes portadores de doenças raras ou de alta complexidade ou para aqueles que necessitem de medicamentos ainda não disponíveis no país, como o caso de pessoas vivendo com HIV e aids com agravos tais como neoplasias raras, resistência aos atuais medicamentos disponíveis, entre outros.

O acesso a medicamentos por decisão judicial era um dos poucos caminhos que as pessoas sem recursos tinham para conseguir determinados tratamentos e reaver a saúde e qualidade de vida. Para a ABIA, este dispositivo restritivo agride os direitos do acesso à justiça, à vida e a saúde.

Nós, da ABIA, questionamos a proposta de fusão da tuberculose, hanseníase, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), aids e hepatites virais numa mesma esfera de gestão no Ministério da Saúde. Esta mudança ocorrerá sem nenhuma discussão com a sociedade civil e outras instâncias de governança da aids. Os riscos para perda do reconhecimento das especificidades e qualidade no enfrentamento das necessidades de cada uma destas patologias é grande, e precisa ser monitorado.

Também rejeitamos a ênfase dada à transferência de responsabilidades da resposta da epidemia para estados e municípios: como estas instâncias poderão operacionalizar esta tarefa num momento em que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido fragilizado e diversos estados e municípios estão em situação de falência?

Outra medida que consideramos lamentável foi o veto ao Projeto de Lei 10159/2018 que previa a dispensa de reavaliação pericial da pessoa com HIV e aids aposentada por invalidez. O veto sequer leva em conta a dimensão do estigma da aids ambiente do trabalho. Para nós, da ABIA, permitir que pessoas aposentadas tenham a aposentadoria revogada para obrigá-las a retornar ao mercado de trabalho – num ambiente marcado por preconceitos e discriminações, que privilegia pessoas jovens e num país com de alta taxa de desemprego – é algo cruel e desumano.

Também alertamos para a gravidade do decreto 9.761 de 11 de abril que estabelece uma nova Política Nacional de Drogas. Ao inverter o propósito desta política – que deixa de ter o foco na redução de danos para promover a abstinência – o governo atende a uma demanda das igrejas evangélicas que monopolizam hoje as chamadas “comunidades terapêuticas”. Com isto, sepulta de vez uma das mais efetivas políticas de enfrentamento ao HIV e à aids entre usuários de drogas injetáveis e não-injetáveis por meio da redução de danos. Para nós, da ABIA, esta medida reforçará o estigma e o preconceito aos usuários de drogas, pois quem não for bem-sucedido na abstinência restará mais exclusão e discriminação. Além disso, as pessoas discriminadas estarão mais vulneráveis e enfrentarão maior risco de infecção pelo HIV e outras doenças infecciosas.

Por fim, outro decreto que nos causou profunda indignação foi o de nº 9750 de 11 de abril que extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Este decreto fará desaparecer pelo menos 650 conselhos previstos pela Política Nacional de Participação Social.

Um levantamento preliminar do Conselho Nacional de Saúde aponta que as principais políticas afetadas por essa extinção serão os direitos humanos, a igualdade racial, a indígena, as cidades, LGBT e o meio ambiente. Tais áreas e respectivas populações são as mais vulneráveis à epidemia do HIV e da aids.

Lembramos que o Brasil era reconhecido mundialmente pela participação da sociedade civil organizada na construção da resposta a epidemia do HIV e da aids. Lamentamos profundamente a extinção deste canal de diálogo tão fundamental para a construção de políticas públicas. E questionamos: qual será o impacto deste decreto nas instâncias já estabelecidas de controle e participação da sociedade civil no campo da aids, ISTs e hepatites, como a Comissão Nacional de Aids e o Comitê de Articulação com Movimentos Sociais?

Ressaltamos que a ABIA tem denunciado exaustivamente o avanço de pautas conservadoras acompanhadas da mutilação de materiais educativos para a população trans e adolescentes em nome da “família e dos bons costumes”. Trata-se de uma censura explícita às informações cientificamente comprovadas sobre saúde sexual e reprodutiva e a prevenção do HIV e outras ISTs. Continuaremos nos manifestando contrários à censura de materiais educativos.

Todas essas ações colocam em risco a resposta à aids no Brasil. Nós, da ABIA, estaremos firmes ao lado das organizações da sociedade civil e do movimento social de aids para criticar e contestar essas medidas que favorecem a precarização da vida e das políticas sociais, contribuem para a pauperização da população e violam os direitos humanos, especialmente o direito à saúde e à vida.