Em março de 1992, a secretária nacional da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+Brasil), a amazonense Vanessa Campos, 47, tinha apenas 19 anos quando recebeu o resultado positivo para HIV. Ela havia contraído o vírus de um namorado, falecido naquele ano em decorrência da Aids. Os primeiros sintomas, no entanto, começaram a surgir em janeiro de 1990, por meio de uma infecção que durou cerca de duas semanas. Uma década depois do início da epidemia, classificada pela mídia com o infame rótulo de “peste gay”, o AZT (zidovudina) era o único tratamento disponível para os pacientes que não sobreviviam por muito tempo.

“A situação era de morte social imediata e diária. Eu me sentia imprópria para a vida”, afirmou Vanessa. “O apoio da minha família foi fundamental para que eu decidisse lutar, apesar de não haver tratamento disponível”, lembrou. Na época, Vanessa trabalhava numa empresa do Polo Industrial de Manaus e foi transferida para um escritório no Rio de Janeiro, onde cursou Processamento de Dados. Ela resolveu interromper os estudos em 1993, ano de nascimento do primeiro filho, cuja identidade ela prefere manter sob sigilo para evitar especulações.

Em 2016, após passagens por outros Estados do Brasil, ela conheceu um grupo no Facebook chamado Rede Mundial, que reunia pessoas com sorologia positiva e apoiadores da causa. “Por muito tempo desconheci a existência do movimento. Seguia me sentindo sozinha e sem ter outra pessoa vivendo com HIV/Aids pra conversar”, contou. “Então, estava lutando pela minha saúde sem saber que outras pessoas estavam unidas para que eu tivesse acesso aos antirretrovirais”.

Ela resolveu tornar pública sua condição em um post na rede social publicado em 1º de dezembro de 2016. A decisão foi resultado de um longo período de reflexão, no qual Vanessa preparou suas duas filhas mais novas a lidarem com a discriminação. “Relatei minha história e a partir daí não parei mais. Voltei a fazer meu tratamento na Fundação Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado e lá conheci a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids no Amazonas (RNP+AM)”, lembrou.

Vanessa também começou a buscar mais informações sobre Organizações Não-Governamentais (ONGs) voltadas ao tema na internet. Em maio de 2017, ela foi eleita representante estadual da RNP+AM para o biênio 2017/2019 pela primeira vez, cargo pelo qual foi reeleita em maio deste ano.

Mas a maior conquista veio em setembro, quando foi a primeira amazonense escolhida secretária nacional de Informação e Comunicação da RNP+. Vanessa atuará na representação e divulgação de ações e pautas da rede no site oficial, Facebook, Twitter e Instagram. A defesa da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP, que consiste na ingestão de medicamentos antes do contato com o vírus) para mulheres cis é uma das pautas.

“Esta estratégia de prevenção ao HIV ainda está concentrada na população-chave (gays, homossexuais, pessoas trans, profissionais do sexo e casais sorodiferentes). Devido a questões de violência estrutural, como machismo e racismo, as mulheres cis estão altamente vulneráveis e precisam ser amplamente contempladas. Então, que o acesso seja facilitado, sendo também uma ferramenta poderosa na prevenção da transmissão vertical”, explicou.

Apesar dos avanços no tratamento e da ampla abordagem científica sobre a doença, o estigma, preconceito e a discriminação persistem. “Rejeição para relacionamento, dificuldades no ambiente de trabalho, uma tremenda falta de humanização nos serviços de saúde que no geral não são nada acolhedores, e nossos direitos sexuais e reprodutivos sendo questionados. Tudo isso compromete bastante nossa saúde mental e faz com que muitas pessoas desistam do tratamento”, lamentou Vanessa Campos.

Amazonas teve 18.928 casos, desde 1980

Publicado no dia 29 de novembro, o Boletim Epidemiológico, do Ministério da Saúde, revelou que de 1980 até junho deste ano, o Amazonas registrou 18.928 casos de HIV notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Levantamento da coordenação de IST/Aids e Hepatites da Secretaria de Estado de Saúde (Susam) identificou 1.000 diagnósticos positivos até outubro.

De 2007 a 2019, o Amazonas ainda registrou aumento constante de notificações, totalizando 8.272. Houve um salto expressivo no biênio 2013-2014 (271 e 716 positivos confirmados, respectivamente). Até junho deste ano, foram contabilizados no Estado 706 diagnósticos, contra 1.671 do ano passado. Uma diferença de 42,2%.

Desde o surgimento da doença, em 1980, até dezembro de 2018, mais de 330 mil pessoas morreram em decorrência da Aids no Brasil. O Norte, nesse recorte histórico, figura em último lugar entre as regiões com maior número de casos. Manaus aparece no sexto lugar entre as capitais com os maiores índices de detecção entre crianças menores de cinco anos (em uma proporção de 100 mil habitantes).

Segundo a enfermeira Evelyn César Campelo, da coordenação de IST/Aids e Hepatites Virais no Amazonas, as campanhas realizadas pela Susam, com ofertas de testes rápidos, possibilitam uma atualização mais apurada das estatísticas. “Em vez de ir às unidades de saúde, eles aproveitam esses eventos extramuros para fazer o exame”, explicou.

Campelo também afirmou que houve uma discreta redução do número de ocorrências este ano em comparação a 2018, mas não soube estipular um índice aproximado (o levantamento oficial será publicado em fevereiro de 2020). “Estamos diagnosticando tarde demais e a doença vai evoluindo. Isso é preocupante. Muitos pacientes começam a fazer o tratamento e depois abandonam”, explicou.

Homens em fase de maior atividade sexual (15 a 25 anos), homossexuais e transexuais respondem, respectivamente, pelos maiores índices de contaminação. A falta de acesso aos remédios, em especial nos municípios do Estado que não integram a rede de Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM), os estigmas associados à doença e os efeitos colaterais são os fatores que aprofundam a baixa adesão ao tratamento.

“É uma questão complexa, que será nosso foco na campanha do ano que vem, com diagnósticos sobre a situação e trabalho voltado à conscientização. Há pessoas que evitam buscar os remédios com medo de serem reconhecidas”, informou Evelyn Campelo.

Ela destacou ainda a importância do trabalho de profilaxia por exposição, voltado aos perfis mais vulneráveis ao vírus, como os profissionais do sexo. O serviço é oferecido desde o ano passado na rede de saúde e está disponível na Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD).

Fonte: A Crítica