O número de cidades que contam com acesso à cirurgia de redesignação sexual no SUS (sistema único de saúde) pode aumentar de 5 para 7 em 2020. Tanto a secretaria de saúde do Amazonas quanto a do Paraná têm buscado cumprir as exigências do Ministério da Saúde (MS) para ampliar o atendimento a pessoas transexuais. Se a expansão se concretizar, Manaus será o primeiro município da região Norte a oferecer esse tipo de procedimento cirúrgico na rede pública.

Hoje os 5 hospitais universitários habilitados para fazer as cirurgias estão localizados nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Porto Alegre e Recife. Além dos ambulatórios nessas unidades, o SUS conta também com outros 7 ambulatórios habilitados pelo Ministério da Saúde. Esses locais não fazem procedimentos cirúrgicos, mas oferecem serviços como a terapia hormonal para transição de gênero.

Em atividade desde julho de 2017, o ambulatório trans que funciona na capital amazonense, em um convênio com a Universidade Estadual do Amazonas (UEL), deve ser incluído na lista de locais habitados pelo governo federal para a cirurgia nos próximos meses.

Em fevereiro, uma comissão formada tanto pela secretaria de saúde estadual quanto pelos secretários municipais do estado deve aprovar a Política Estadual de Saúde LGBT. A expectativa é que, em abril, seja votado o plano que detalha essa política. Ambas as etapas são exigidas pelo Ministério da Saúde para habilitação da unidade.

Os procedimentos também abrem caminho para que o Hospital Universitário Getúlio Vargas, ligado à Universidade Federal do Amazonas, possa oferecer a cirurgia. “A partir da aprovação destes instrumentos (Política e Plano Estadual de Saúde LGBT) é que serão estabelecidos os prazos para implantar o serviço hospitalar, que deverá  ser no Hospital Universitário Getúlio Vargas”, informou a Secretaria de Saúde do Amazonas ao HuffPost Brasil. De acordo com a pasta, “somente o hospital universitário poderá executar o serviço, de acordo com a portaria do Ministério da Saúde”.

Por meio de sua assessoria de imprensa, contudo, o Hospital Universitário Getúlio Vargas, filiado à empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), afirmou que “não está habilitado ou em processo de habilitação para a realização de cirurgias de redesignação de gênero”.

Cirurgia de redesignação sexual no SUS

A cirurgia de redesignação sexual é oferecida pelo SUS desde 2008, mas foi aplicada inicialmente de forma restrita, focada em mulheres trans. A política nacional foi ampliada cinco anos depois, com a portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, do Ministério da Saúde. A partir daí, a rede pública passou a oferecer os serviços de atenção ambulatorial, como a terapia com hormônios e o acompanhamento psicológico. A cirurgia para mudança de genitália, em homens transexuais, contudo, foi instituída em junho de 2019, de acordo com o Ministério da Saúde.

Os procedimentos cirúrgicos previstos incluem readequação sexual (que adapta a genitália ao gênero da pessoa), mastectomia (retirada de mama), plástica mamária reconstrutiva, cirurgia de troca de timbre de voz, histerectomia (retirada do útero) e colpectomia (retirada da vagina).

O Ministério da Saúde informou ao HuffPost que foram realizados 19.978 procedimentos relacionados à transexualização em 2019, até outubro. Deste total, 55 foram cirurgias de redesignação sexual e 3.466 atendimentos relacionados à hormonioterapia. Já em 2018, foram realizadas 64 cirurgias de redesignação sexual e 5.329 atendimentos em hormonioterapia. Uma mesma pessoa pode ter feito mais de um procedimento.

 

Serviços do SUS para pessoas trans habilitados pelo Ministério da Saúde

Ambulatorial

Curitiba: Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais de Curitiba

Rio de Janeiro: Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia

São Paulo: Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS

Uberlândia: Hospital das Clínicas de Uberlândia

Vitória: HUCAM-Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes

Salvador: Hospital Universitário Professor Edgard Santos

João Pessoa: Complexo Hospitalar de Doença Infectocontagiosas Dr. Clementino Fraga

Ambulatorial e hospitalar

São Paulo: Hospital de Clínicas da FMUSP – Hospital das Clínicas de São Paulo

Goiânia: Hospital das Clinicas – Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás

Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro – HUPE Hospital Universitário Pedro Ernesto

Recife: Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco

Porto Alegre: Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Para a presidente da Assotram (Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado do Amazonas), Joyce Gomes, a oferta da cirurgia em Manaus deve ter um grande impacto para população trans. “Nem todas as pessoas têm dinheiro para ir para outro estado. Tem a questão também da exploração [sexual] de pessoas que trabalham para pagar a cirurgia”, afirmou ao HuffPost Brasil. “Manaus é um dos focos principais, um dos locais mais visados para exploração sexual.”

De acordo com Gomes, na rede particular, o custo das operações varia entre R$ 12 mil e R$ 17 mil na capital amazonense, mas, em São Paulo, elas podem ser feitas a R$ 3,5 mil, o que leva muitas pessoas trans a procurarem clínicas e hospitais paulistanos.

Outras pessoas buscam a Justiça. De acordo com a presidente da Assotram, duas pessoas no Amazonas conseguiram, por medidas judiciais, o custeio de passagens para realizar os procedimentos em Brasília e em São Paulo, mas ainda não sabem quando farão a cirurgia.

Resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) publicada em 9 de janeiro reduz de 21 para 18 anos a idade mínima para esse tipo de procedimento e estabelece como obrigatório o período de um ano de acompanhamento do paciente por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar.

A nova norma também prevê que o paciente deve ser informado sobre os procedimentos e intervenções clínicas e cirúrgicas aos quais será submetido, incluindo o risco de esterilidade. É necessário obter o consentimento livre e esclarecido sobre essa questão. Qualquer procedimento é vedado a pessoas  com diagnóstico de transtornos mentais que os contraindiquem.

Para o tratamento hormonal, a idade mínima é de 16 anos. O bloqueio dos hormônios da puberdade ou a hormonioterapia cruzada em menores de 18 anos só ocorrerão com acompanhamento psiquiátrico e anuência da equipe de saúde e do responsável legal pelo adolescente.

A portaria do Ministério da Saúde, por sua vez, prevê que a hormonioterapia será iniciada a partir dos 18 anos e os procedimentos cirúrgicos a partir de 21 anos, após dois anos de acompanhamento pela equipe multiprofissional “que acompanha o usuário(a) no Serviço de Atenção Especializada no Processo Transexualizador”. Esse é o prazo adotado, de acordo com os profissionais de saúde ouvidos pelo HuffPost.

Como é o atendimento do SUS às pessoas trans que buscam cirurgia

Aos 29 anos,Joyce Gomes, que atualmente faz o tratamento hormonal, tem planos de fazer a cirurgia de redesignação sexual. “Comecei por conta própria e continuei no ambulatório aqui em Manaus desde o ano passado. Eles pedem exames e te indicam o hormônio mais adequado para o seu corpo, com menos efeitos colaterais. É outra coisa tomar uma medição com o profissional te indicando”, afirma.

No ambulatório amazonense, a consulta inicial começa com acolhimento pela equipe de enfermagem e pela assistente social. O paciente é atendido por uma psicóloga e, em seguida, entra a equipe médica, que faz uma análise clínica e pede exames para iniciar a hormonioterapia. “Muitas mulheres trans e travestis já usam hormônio, muitas vezes de forma inadequada. Fazemos os ajuste de doses”, disse ao HuffPost Brasil a coordenadora da unidade, Dária Neves, ginecologista e professora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA).

Com exceção de alguns remédios doados, o ambulatório não disponibiliza os hormônios, apenas a receita. Após essa etapa, o acompanhamento é trimestral no primeiro ano com equipe médica. Também podem ser

feitos agendamentos com a psicóloga e com a fonoaudióloga. A equipe atende diariamente em dois turnos e conta com duas ginecologistas, uma endocrinologista, duas psicólogas, duas assistentes sociais, uma fonoaudióloga, duas enfermeiras e quatro técnicas de enfermagem, sendo que uma delas é uma mulher trans.

Além do atendimento de saúde, o ambulatório desenvolve outros 4 projetos: avaliação das mamas da população trans, para evitar doenças como câncer de mama; perfil clínico da população trans; avaliação de HIV, sífilis e outras infecções sexualmente transmissíveis e um estudo psicológico sobre transtornos. “O ambulatório tem esse vínculo com a universidade, então somos um centro de pesquisa para reconhecimento, dignidade e visibilidade dessa população”, afirma Neves.

A unidade criada por iniciativa da ginecologista também oferece apoio jurídico, devido a um projeto da faculdade de Direito da UEL. O núcleo orienta processos como retificação no nome civil e como agir em casos de LGBTfobia.

Em dois anos e meio de funcionamento, o ambulatório atendeu 171 pacientes. Neves estima que 40% desse grupo queira a cirurgia de redesignação sexual. “Lamentavelmente era para ter ocorrido [a oferta] desde 2013, quando a portaria nacional foi aprovada, mas teve esse vácuo até o momento, na gestão”, afirmou.

Paraná também busca oferecer cirurgia de redesignação sexual

A mais de 4 mil quilômetros de Manaus, Curitiba também busca ampliar o atendimento à população trans no SUS. Ao HuffPost Brasil, a Secretaria de Saúde do Paraná informou que “está em tratativas para pactuação de hospital no estado que atenda esta necessidade” e que, até lá, “as solicitações estão sendo encaminhadas para atendimento em serviço de referência no Rio Grande do Sul”.

De acordo com a equipe técnica da pasta, estão sendo tomadas medidas para que o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) ofereça cirurgias de redesignação sexual. Em 2017, a Defensoria Pública do Estado do Paraná fez uma recomendação para que a unidade oferecesse esse tipo de procedimento. A equipe do hospital tem sido treinada para isso. Quatro médicos participaram de um curso à distância oferecido pela USP (Universidade de são Paulo).

Na época, a defensora pública coordenadora do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH), Camille Vieira, alertou para o perigo da clandestinidade desse tipo de cirurgia. “Pessoas que não têm acesso a este tipo de serviço ficam sujeitas ao uso clandestino do silicone industrial para moldarem os seus corpos, o que pode ocasionar diversas complicações no sistema respiratório e nervoso, assim como ficam à mercê do uso de hormônios sem acompanhamento médico”, afirma.

A capital paranaense conta, desde dezembro de 2013, com o Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais (CPATT), que realiza cerca de 15 atendimentos diariamente. Apesar de funcionar há pouco mais de 6 anos, a unidade só foi habilitada pelo Ministério da Saúde em 2016, devido aos procedimentos exigidos.

Fonte: HuffPost Brasil