“Tivemos muitos avanços. Mas também corremos o risco de voltar ao que vivemos há 40 anos. Há novos grupos ultraconservadores que querem tirar direitos já conquistados”. O alerta vem do educador espanhol Federico Armenteros, de 60 anos, defensor ferrenho de direitos para idosos LGBT +, um tema sensível em um assunto já tido como tabu. “Não se fala de velhice LGBT porque a imagem do jovem gay é a que vende. Isso só aumenta o preconceito e aumenta a vulnerabilidade a doenças, abandono, solidão”, lamenta.

Há onze anos, em plena crise na Espanha, Armenteros decidiu criar uma empresa, que anos depois virou fundação, a 26 de Diciembre, que atende idosos LGBT+ com serviços de saúde, alimentação, sociabilidade e residência em um projeto pioneiro em Madri. A maioria dos beneficiados foi abandonada pela família e esquecida, ou morava na rua. “Imagine o preconceito já sofrido pelos homossexuais , e dobre, ou triplique, quando se fala em um velho gay”, afirma Armenteros, que diz só ter tido coragem de “sair do armário” aos 36 anos, depois de um casamento, uma filha e muita terapia. A seguir, os principais trechos da entrevista que o espanhol concedeu ao GLOBO em São Paulo, onde participou do 3º Seminário Velhices LGBT , promovido pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, em parceria com a ONG Eternamente Sou e apoio do SESC.

“Velhice” e “LGBT” são termos que raramente aparecem juntos em uma discussão. Por quê?

A imagem do jovem gay é a que vende. É como no mundo hétero: o jovem branco, de corpão, consumista. É o modelo competitivo e aceito no mundo capitalista. É um choque para as pessoas quando digo que sou idoso e gay. Parece que não combina. Até nas propagandas dirigidas ao público homossexual, de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo, quem aparece são os jovens. Isso só aumenta o preconceito e aumenta a vulnerabilidade a doenças, abandono e solidão. Dados recentes de saúde na Espanha mostram que a transmissão de HIV e outras DSTs aumentou nesse grupo com mais de 50 anos.

O preconceito aumenta proporcionalmente com a idade?

Claro. Primeiro por uma questão histórica. O que os LGBT+ mais velhos viveram não tem nada a ver com o que os de hoje vivem. Na minha época, ser gay era tido diretamente como sinônimo de doença, delinquência, pecado. As pessoas agora com 80 anos viveram mais de 60 anos em uma homofobia forte. E essa homofobia foi interiorizada. Não se falava. Até por uma questão de sobrevivência. Naquela época as pessoas se suicidavam, eram presas ou internadas em hospital psiquiátrico. Nunca se fez nada por esse coletivo, como se o tempo fosse curar tudo. E então os preconceitos foram se acumulando. Existe a discriminação dos próprios contemporâneos, que cresceram dizendo que o outro era a bicha, o estranho, o doente. As lésbicas ainda somam discriminação por serem mulheres. Imagine o preconceito já sofrido pelos homossexuais e dobre, ou triplique, quando se fala de um velho gay.

Como foi “sair do armário” em uma época diferente da de hoje?

Desde pequeno eu sabia que era diferente. Todos se afastavam de mim. Quando fiz quatro anos, um tio me deu uma boneca. Quando fui pegar o presente, todo feliz, ele tirou da minha mão e disse: “Sua bicha!”. Nunca me esqueci. Foi a primeira vez que percebi que tinha que esconder da sociedade como eu me sentia. Quando cresci, minha forma de defesa era brigar. Quando me ofendiam, às vezes eu batia, em outras apanhava. Na pré-adolescência, tentei me matar. Não tinha amigos, nem apoio na família. Meu pai tentou de tudo, me colocou no futebol. Ele era filho de republicanos, que perderam a guerra. Meu avô foi preso, nunca se falava nesse tema, eles foram muito machucados pelo franquismo. Meu pai pensava que eu tinha que ser forte, e ele me via frágil. Minha mãe nunca foi próxima, não me lembro de um carinho. Fugi de casa, fui parar em um serviço social, quase virei padre. Mas fui expulso com a justificativa de que não tinha vocação. Claro! Um dia, me apaixonei por uma mulher e achei que estava curado. Curado, porque eu achava que era errado, e que naquele momento tinha virado uma pessoa ‘normal’. Ela era uma pessoa maravilhosa. Me casei, tivemos uma filha. Mas eu sentia que minha vida era um fingimento. Comecei a fazer terapia até que, aos 36 anos, assumi para mim mesmo que era gay. Ainda queria esconder do resto do mundo. Meu maior medo era minha filha. Mas ela percebeu antes de todo mundo, e um dia me perguntou. Ela via que eu era diferente dos pais dos amigos dela. Minha hoje ex-mulher nunca me atacou. Elas me entenderam. Isso foi muito importante. Se tivesse continuado com minha vida hétero, acabaria em um hospital psiquiátrico. Depois que saí do armário, decidi que nunca mais iria voltar.

Daí surgiu a ideia de criar o primeiro centro e residência especializado em idosos LGBT+?

Não foi imediato. Mas continuei na terapia e minha psicóloga disse: você ainda vai ter um papel muito importante para esse coletivo. Em 2008, eu era diretor de um centro de educação infantil, veio a crise na Espanha e fomos todos para a rua. Eu já tinha 50 anos. Não ia conseguir mais a mesma remuneração, e os mais jovens teriam preferência. Como aprendi a resolver meus problemas, pensei: “Estou velho. Vou envelhecer ainda mais. E os velhos LGBT, cadê?”. Foi aí que decidi usar minha experiência, trabalho e tempo para o meu coletivo. Nasceu a Fundação 26 de Diciembre. Fui a bancos, pedi doações a pessoas conhecidas, desconhecidas. Não tinha carro, andava, pegava metrô. A repercussão foi grande. Não havia nada igual no mundo. A maioria dos idosos LGBT+ não tem dinheiro, aposentadoria, vive à margem da sociedade. Muitos me diziam que tinham medo de morrer porque os vizinhos só descobririam quando sentissem o cheiro. Ninguém liga, era preciso fazer algo. Hoje atendemos 220 pessoas diariamente, no centro de convivência e residência ou em suas próprias casas. Elas têm serviços de saúde, alimentação, sociabilidade. São 14 funcionários. Temos também apartamentos compartilhados, com mais de vinte pessoas. Até o final do ano, vamos abrir um asilo propriamente, nos arredores de Madri. Isso vai ajudar a mostrar que existimos, precisamos de visibilidade. Será público, pelo convênio que temos com o governo local. Terá o nome de Josete Massa, o primeiro homem que conseguimos ajudar. Era um senhor que vivia isolado há anos. Ele tinha câncer de próstata, estava morrendo sozinho. E deixou que o ajudássemos. O que mais faltava era alguém do lado dele. É um símbolo de muitos casos.

Como vê a questão de patrimônio no caso de um casal idoso LGBT+? Não é raro que, quando um companheiro morre, a família que nunca deu atenção apareça.

Recomendamos que as pessoas deixem tudo registrado. Hoje também há leis de união estável que ajudam a que o outro não fique desamparado. Muitas famílias nem sabem que o parente se casou, e esse é um instrumento de proteção. Também é importante registrar em cartório como querem ser cuidados na velhice. Quem vai ser o tutor, como esperam que os tratamentos de saúde sejam conduzidos. Aí, quando chegar a hora em que já não poderão responder, por velhice ou doença, ou que não tenham apoio de família ou amigos, a vontade será respeitada.

Os obstáculos mudaram com o passar dos anos? Que futuro imagina para a causa LGBT+?

Há questões problemáticas. Como tenho as lembranças do passado, vejo que o que aconteceu há mais de 40 anos está voltando. Surgiram novos grupos ultraconservadores que querem tirar direitos já conquistados. Na Espanha, por exemplo, voltaram os ataques a homossexuais, imigrantes, mulheres. E também falta trabalhar melhor a relação entre as gerações, para que os homossexuais de hoje não comprem a ideia do individualismo, porque isso não vai nos levar a nada. Claro que houve avanços também. Se hoje me agredirem, posso denunciar, e serei ouvido. Há leis que antes não existiam. Mas regredir em temas de igualdade e respeito é inaceitável. A diferença é que há cada vez mais pessoas decididas a não dar nem um passo para trás.