Em 1988, a Constituição brasileira definiu a saúde como um direito universal e uma responsabilidade do Estado. O progresso em direção à cobertura universal de saúde no Brasil foi alcançado por meio de um Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1990. Com sucessos e retrocessos na implementação de programas de saúde e na organização de seu sistema, o Brasil alcançou acesso quase universal aos serviços de saúde para a população. A trajetória de desenvolvimento e expansão do SUS oferece lições valiosas sobre como dimensionar a cobertura universal de saúde em um país altamente desigual, com recursos relativamente baixos alocados aos serviços de saúde pelo governo em comparação com os países de renda média e alta.

A análise dos últimos 30 anos, desde o início do SUS, mostra que as inovações vão além do desenvolvimento de novos modelos de atenção e destacam a importância do estabelecimento de estruturas políticas, legais, organizacionais e de gestão, com papéis claramente definidos para os órgãos federais, governos locais na governança, planejamento, financiamento e prestação de serviços de saúde. A expansão do SUS permitiu que o Brasil atendesse rapidamente às mudanças nas necessidades de saúde da população, com o aumento dramático da cobertura dos serviços de saúde em apenas três décadas. No entanto, apesar de seus sucessos, a análise de cenários futuros sugere a necessidade urgente de lidar com desigualdades geográficas persistentes, financiamento insuficiente e colaboração sub-ótima entre o setor privado e o setor público. As políticas fiscais implementadas em 2016 deram início a medidas de austeridade que, paralelamente às novas políticas ambientais, educacionais e de saúde do governo brasileiro, poderiam reverter as realizações suadas do SUS e ameaçar sua sustentabilidade e capacidade de cumprir seu mandato constitucional de prover saúde: cuidar de todos.

Descentralização

O SUS ajudou a reduzir as desigualdades em saúde com melhorias na cobertura e no acesso à saúde em todo o país, mas grandes variações permaneceram entre os municípios em relação à infraestrutura, recursos humanos, capacidade de gestão e acesso a serviços de saúde eficazes.

Para incorporar os princípios de universalidade, integralidade, descentralização e participação comunitária, foi necessária a transferência de responsabilidades e recursos para prover cuidados de saúde dos governos federal aos estaduais e municipais, reorientar o poder político e a responsabilidade para os governos locais. A descentralização do poder foi acompanhada pela criação de comissões intergeracionais tripartites e bipartidárias, com a participação dos governos federal, estadual e municipal para a tomada de decisão compartilhada sobre políticas de saúde, e conferências e conselhos de saúde como mecanismos de participação social.

Como parte do processo de descentralização, os municípios brasileiros foram obrigados a criar um departamento de saúde para a administração das unidades de saúde e assumir a responsabilidade pelo cofinanciamento dos programas de saúde e pela prestação e gestão dos serviços de saúde. Os 5.570 municípios do Brasil são responsáveis ​​pela provisão de APS e vigilância sanitária e garantem o acesso dos pacientes à atenção hospitalar geral e especializada, incluindo atendimento de emergência e serviços de saúde mental.

A descentralização também envolveu a criação de regiões de saúde (um grupo contíguo de cidades e cidades com um contexto social, econômico e de infra-estrutura compartilhado com a finalidade de integrar a organização e o planejamento de serviços e ações de saúde), o desenvolvimento de diretrizes para o planejamento integrado de saúde e o estabelecimento de conselhos regionais de gestão coordenados pelas secretarias estaduais de saúde. em parceria com as autoridades municipais.

A expansão do acesso universal à saúde no Brasil coincidiu com a evolução de um sistema de saúde segmentado, compreendendo um sistema nacional de pagamento único financiado publicamente e um sistema de saúde do setor privado, acessado principalmente por pacientes com alta renda e renda pagos por desembolso direto e seguro privado. Em 1999, foi criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária para controlar a qualidade de medicamentos, produtos de saúde e serviços de saúde. Em 2000, foi criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar para regulamentar o setor de seguros privados.

 

Financiamento futuro 

Nos últimos 30 anos, o SUS expandiu o acesso aos serviços de saúde acompanhado de uma queda das desigualdades nos indicadores de saúde da população, mas seu desempenho futuro está ameaçado pelas transições demográficas, epidemiológicas, econômicas, políticas e sociais enfrentadas pelo Brasil.

Para avaliar como essas transições poderiam afetar quatro indicadores de saúde até 2030 (o ano alvo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU), consideramos quatro cenários hipotéticos de transferência federal de fundos para os municípios. No primeiro, as transferências federais de saúde para os municípios foram mantidas constantes no montante transferido em 2015 até 2030. Nos três cenários restantes, presumimos que as transferências cresceriam na mesma proporção que o produto interno bruto (PIB): 1% ao ano no segundo cenário, 2% no terceiro e 3% no quarto.

O primeiro indicador considerado foi a mortalidade infantil, uma medida comumente usada para medir saúde da população. O segundo, a proporção de nascimentos cuja mãe participou de sete ou mais visitas ao centro de atendimento pré-natal, uma medida de serviços preventivos de saúde; terceiro, a cobertura do exame FSH, uma medida de acesso ao PHC, exame que detecta os últimos vírus contraídos pelo paciente; e, por último, mortalidade contumaz (mortes prematuras com menos de 75 anos que poderiam ter sido evitadas, atendidas de forma efetiva e pontual) devido a doenças cardiovasculares, principal causa de morte no Brasil entre pessoas com 60 anos ou mais, uma medida da qualidade da assistência.

No geral, os aumentos nas transferências federais de recursos para as prefeituras municipais foram associados à redução da mortalidade infantil, maior cobertura da FSH e consultas mais frequentes nos centros de atendimento pré-natal. Cada aumento de 10% no financiamento federal para os municípios foi associado a um aumento na cobertura da FSH de 1,74 ponto percentual e um aumento de 0,19 ponto percentual da proporção de mães que completaram sete ou mais consultas no pré-natal. Replicamos as regressões mais saturadas, acrescentando interações entre transferências federais que indicam diferentes tamanhos de municípios. No caso da mortalidade infantil, os efeitos estimados das mudanças de financiamento foram maiores nos menores municípios e não houve diferenças significativas entre o efeito da transferência de fundos nas categorias de primeiro e segundo tamanho. A magnitude do efeito de financiamento alterado diminuiu significativamente nos municípios nas categorias de terceiro tamanho e não foi estatisticamente diferente de zero na quarta e quinta categorias. Um padrão análogo de efeitos maiores para os municípios de pequena população também foi observado para a cobertura da FSH e para as consultas no pré-natal. Estes resultados sugerem que os subsídios federais são muito mais eficazes em municípios menores, que são mais dependentes de recursos federais do que os municípios maiores.

 

Tradução de Jéssica Paula (jessica@agenciaaids.com.br)