Por Natalia Mallo*

Desde a nossa estreia, há um ano, passamos por diversas situações de violência: ameaças de censura, ameaça física, insultos e difamação na internet, entre outros. Mas esta é a primeira vez que o espetáculo é impedido de acontecer.

O conteúdo da liminar concedida pelo juiz Luiz Antônio de Campos Júnior, da 1º Vara cível de Jundiaí, que resultou no cancelamento, é um tratado de fundamentalismo e preconceito.

"… muito embora o Brasil seja um Estado Laico, não é menos verdadeiro o fato de se obstar que figuras religiosas e até mesmo sagradas sejam expostas ao ridículo, além de ser uma peça de indiscutível mau gosto e desrespeitosa ao extremo, inclusive. De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem Jesus Cristo como o filho de Deus, e em se permitindo uma peça em que este homem sagrado seja encenado como um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas."

Todas as situações de violência que passamos tiveram algo em comum: contestam a presença de uma travesti em cena interpretando Jesus.

Afirmar que a travestilidade da atriz representa em si uma afronta à fé cristã ou concluir, antes de assistir o trabalho, que é um insulto à imagem de Jesus é do nosso ponto de vista, negar a diversidade da experiência humana, criando categorias onde algumas experiências são válidas e outras não, algumas vidas tem valor e outras não. São os discursos e práticas que tornam o Brasil um país extremamente desigual, e um território inóspito para quem vive fora da normatividade branca, cisgênera e heterossexual.

Desde sua estreia no Brasil a peça tem tido uma resposta do público muito positiva, lotando teatros e criando espaços de diálogo, resistência e encontro. Temos passado por diversos espaços culturais e festivais (Filo, Porto Alegre em Cena, Cena Contemporânea, Fiac). Instituições importantes da cultura como Sesc, Itaú Cultural, Instituto Tomie Ohtake e outras também abraçaram o trabalho demonstrando disponibilidade em dar visibilidade aos temas que ele aborda. Também recebemos o apoio da Igreja Anglicana do Brasil.

Mas mais importante do que tudo isso, é o fato da peça ter se tornado dispositivo de debate sobre temas sociais urgentes, graças à sua capacidade de questionar mecanismos de opressão estruturais e institucionalizados.

Desde o início temos promovido instâncias de diálogo, educação e debate e buscado levar o trabalho não só a festivais e teatros centrais, mas a locais descentralizados, carentes de programação cultural e que abrigam comunidades vulneráveis. Estivemos em prisões, abrigos, centros de acolhida, sedes de coletivos e ativismo, e estivemos na rua.

Conhecemos de perto a realidade de travestis e transexuais, e de outros grupos minorizados, e justamente por isso, fazemos constantemente um chamado à reflexão sobre a desigualdade gritante e naturalizada em que vivemos.

O Brasil é o país mais transfóbico do mundo. Diariamente travestis são espancadas e assassinadas sem que a mídia, a opinião pública ou o sistema de justiça reconheçam a gravidade e o inaceitável do fato. Estas pessoas vivem e morrem na invisibilidade.

Convido você, que está lendo isto, a escrever no google "travesti assassinada em …" (preencher com qualquer cidade do Brasil). O resultado vai ser sempre devastador, brutal e alarmante.

Houve uma grande mobilização e articulação para que o espetáculo pudesse ser cancelado, uma verdadeira estratégia reunindo diversos interesses e interessados e incluindo planejamento, timing e construção de narrativas. Censurar um espetáculo, em nome dos bons costumes, da fé e da família brasileira parece ser, para alguns fariseus, mais importante e prioritário do que olhar para a sociedade e tentar fazer alguma contribuição concreta para mudar o quadro de violência em que estamos todas e todos soterrados.

O espetáculo, escrito por Jo Clifford, busca resgatar a essência do que seria a mensagem de Jesus: afirmação da vida, tolerância, perdão, amor ao próximo. Para tanto, Jesus encarna em uma travesti, na identidade mais estigmatizada e marginalizada da nossa sociedade. A mensagem é de amor. Mas é também queer e provocadora. Não é comportada nem se deixa assimilar. É de carne e fala de um corpo político, alterado, constantemente violentado e oprimido. Mas também cheio de vida, alegria e potência. A Rainha Jesus contesta a tutela sobre os corpos, o patriarcado e o capitalismo. E abençoa a todos e todas por igual.

* Natalia Mallo é tradutora e diretora do espetáculo ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’.

** "A Agência Aids publica o artigo da diretora Natália Mallo porque o respeito à liberdade de expressão é importante  e fundamental para a construção da tolerância e cidadania para as pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bisexuais, Travestis e Transexuais). Também serve para as pessoas que vivem com qualquer tipo de patologia. A arte, as palavras, novas ideias, ampliação do olhar  são uma espécie de remédio: inclusive para  aquele vírus que alguns têm, que produz e alimenta a intolerância e o preconceito no mundo." (Roseli Tardelli, diretora da Agência de Notícias da Aids)

Fonte: Texto publicado originalmente na página oficial do espetáculo no Facebook.