Beto Volpe

A Constituição Federal de 1988 garantiu aos cidadãos brasileiros o direito à Saúde. Desde então, e com a implantação do Sistema Único de Saúde na lei 8080, está sendo desenvolvido um processo de descentralização das ações, fator primordial para que seja dada cobertura universal, integral e equânime em um país de dimensões continentais e realidades tão díspares e diversas. Esse processo ainda encontra sérios obstáculos para sua implantação, porém não se pode negar que o SUS é a maior política de saúde pública do mundo. Vejamos alguns dados:

– mais de 63 mil unidades ambulatoriais e 6.800 hospitais com mais de 440 mil leitos que recebem anualmente 12 milhões de internações.
– 1 bilhão e 400 milhões de procedimentos de atenção básica, 625 milhões de consultas e 300 milhões de exames laboratoriais.
– 2,5 milhões de partos, 132 milhões de atendimentos de alta complexidade e 12 dos 16 mil transplantes realizados no Brasil (perdendo apenas para os Estados Unidos, onde é pago).
– ampliação do Programa Saúde da Família, que hoje atende a 78 milhões de pessoas e do Programa Saúde do Idoso, com 707 Centros de Atendimento Geriátrico no país.
– o Programa de DST/AIDS é referência mundial de enfrentamento à epidemia, com assistência integral e distribuição de medicamentos a 170.000 pessoas, além de um Programa Nacional de Imunizações que mantém coberturas superiores a 95%.
– tem caráter participativo em instâncias de controle social, com destaque aos Conselhos de Saúde, onde são formuladas e monitoradas as políticas públicas em Saúde dos municípios, dos estados e da federação, política essa aperfeiçoada através da aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde do Pacto pela Saúde, Pacto pela Vida e Pacto pela Gestão.

Ocorre que, já há algum tempo, tanto a sociedade civil organizada quanto gestores e profissionais em saúde têm percebido uma sistemática perda de direitos que já julgavam conquistados e à ruptura para com os princípios de acesso universal, integral e equânime aos programas, serviços e insumos.

Os Governadores e Secretários de Estado da Fazenda, através do CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária – com apoio da Procuradoria e Secretaria de Saúde do Paraná apresentaram um memorial ao Congresso Nacional contendo uma série de propostas de emendas ao PLC 001/03, que regulamenta a EC 29 que trata da vinculação orçamentária de 12% dos recursos orçamentários para a Saúde. Essa regulamentação é um sonho antigo dos movimentos sociais em saúde, uma vez que deixaria claras as competências e limites dos gestores da área. Porém, o sonho virou pesadelo. Entre as sugestões dos executivos estaduais ao legislativo nacional estão a inclusão como verba da saúde as obras de saneamento básico (Ministério das Cidades), saúde nas penitenciárias (Administração Penitenciária), aposentadoria de funcionários da saúde (Previdência), ações de educação e assistência social, além da redução da vinculação orçamentária para a Saúde de 12% para 10% dos orçamentos, além de excluir da Saúde o tributo para ela criado, a CPMF.

Ora, mesmo com todas as conquistas citadas, sabemos que existem sérias lacunas no Sistema, que geram filas, falta de profissionais, atraso na realização de exames, fracionamento ou falta de medicamentos e outras mazelas. Não é difícil imaginar o quadro com uma redução de estimados 16,67% da verba atual.

Paralelamente a essa insanidade executiva e legislativa, o poder judiciário nos brindou no último dia 27 de fevereiro com a instauração da pena de morte no Brasil, através da ministra Ellen Gracie, presidente do STF, que revogou liminar de renais crônicos de Alagoas e determinou que medicamentos excepcionais não poderão mais ser fornecidos pelo SUS por meio das vias judiciais.

Essa medida, entendida como inconstitucional por juristas do porte de Yves Gandra da Silva Martins (que diz que o ser humano é a única razão do Estado), declara que nós, que vivemos com patologias complexas e de difícil manejo, somos uma ameaça à ordem pública. É a pena capital aplicada a milhares de pessoas que vivem com HIV, câncer, esquizofrenia, esclerose múltipla e tantas outras. Ao mesmo tempo a OAB fez acordo com o executivo para que a partir deste ano projetos de assistência jurídica não sejam mais financiados pelo estado. A sistemática fala de que as assistências jurídicas em ONGs são manipuladas por laboratórios que também compram médicos inescrupulosos encontrou eco em alguns membros da sociedade civil e o resultado está aí: a solução para a sustentabilidade da saúde pública é a eliminação dos pacientes mais onerosos ao Estado.

Se esse for o novo referencial em políticas públicas, em breve estaremos vendo, por exemplo, escolas e prédios públicos não efetivando adaptações para acolher portadores de deficiências por entender que os direitos individuais estariam se sobrepondo aos direitos coletivos. Uma leitura míope dos direitos humanos, que merece denúncia junto às cortes internacionais.

E não é difícil também imaginar o que será da re-privatização da saúde pública em um país onde a saúde constantemente é caso de justiça, quando não de polícia.

Viva o SUS ! Viva a vida!

Beto Volpe é representante do Brasil na Rede Latino Americana de Pessoas Vivendo com HIV e Presidente do Grupo Hipupiara Integração e Vida – São Vicente/SP. Cel.: (0XX13)9723-9499