A análise de 100 dias de um governo é simbólica, mas prefiro acreditar que os governos devem ser analisados todos os dias. Neste artigo, proponho uma reflexão profunda sobre os 100 dias de Bolsonaro à frente do Brasil na ótica da epidemia de aids e suas coinfecções, como a tuberculose e as hepatites virais.

A postura catastrófica e preconceituosa do presidente contra as pessoas vivendo com HIV/aids começou muito antes das eleições. Em 2010, em entrevista ao extinto programa CQC, da Band, Bolsonaro disse, em tom de julgamento, que a aids é problema de cada um. Na época, ainda deputado, sua fala não teve o peso que deveria ter tido. Eleito presidente, Bolsonaro mostrou que não era somente uma frase, mas que seu governo viria para destruir o pouco que resta do que já foi considerando um “programa de referência para o mundo”.

Nestes 100 dias, a amostra já foi assustadora, pois não só não abriu diálogo com os movimentos sociais, como tomou decisão causando estragos de difícil solução.

A campanha de Carnaval deste ano foi um desastre, o governo não direcionou a mensagem e quando falamos com todos, não falamos com ninguém.

Não direcionar a mensagem de prevenção para a população LGBTQI+ deixou claro que o atual governo desconsidera os dados epidemiológicos e não reconhece este público como cidadão. São populações que estão no topo da pirâmide da infecção pelo HIV.

O senhor ministro da Saúde, Henrique Mandetta, teve uma fala equivocada quando quis restringir o combate a aids a  família. De que família ele está falando? Poderia ser a família escolar? Família de trabalho? Família de diversão?

Não, o conceito de família deste governo é baseado em épocas remotas onde a guilhotina poderia ser um caminho para quem discordasse.

A cartilha de homens trans que se encontrava na página no Ministério foi uma das primeiras vítimas da atual gestão, quando no dia 3 de janeiro foi tirada do ar.  A homofobia pulsa no sangue de grande parte desta família, digo, governo.

Falar para todos e não para os grupos mais vulneráveis com linguem adequada e direta, é uma forma de fugir das responsabilidades e não criar desconforto junto aos conservadores.

A troca de gestores no Departamento de Aids, que considero compreensiva, uma vez que mudou o governo, foi feita sem qualquer diálogo com a sociedade civil, não fomos chamados para debater se quer um programa de saúde pública contra aids.

No início de març, nos deparamos com outra bomba. O governo suspendeu a distribuição dos kits de autoteste de HIV, com a justificativa de que a “ Anvisa identificou uma falha no insumo, o que implica na impossibilidade de interpretação do resultado”. A nota técnica foi feita sem esclarecimentos. Não sabemos até agora quando este insumo estará disponível novamente no SUS.

A saga desta gestão contra a luta a favor dos direitos humanos e das pessoas vivendo com HIV/aids voltou ao centro das atenções nesta semana. O presidente Jair Bolsonaro vetou o projeto de lei que impedia a desaposentadoria das pessoas com HIV. Estamos falando de pessoas que, por muitos anos, viveram com a doença e hoje convive com sequelas físicas e psicológicas em decorrência da aids.

O gosto pela destruição nestes 100 dias também chegou ao Departamento de Aids. Na última semana, o governo decidiu incluir tuberculose e hanseníase neste espaço.

Acredito que o programa de tuberculose, que há anos deixa a desejar sem uma ação que venha amenizar a epidemia, não terá solução em uma casa nova. Também não vejo nenhuma justificativa para incluir a hanseníase no Departamento, afinal não justifica nem como coinfecção com as pessoas com HIV/aids e nem como forma de transmissão sexual.

O Departamento de Aids se tornou uma fábrica de letrinhas, onde o objetivo é manter no anonimato   patologias tão importantes, como é a tuberculose e a hanseníase, a serem combatida em uma desvairada loucura de um governo sem políticas públicas.

Meu temor nesta sopa de letrinhas não está relacionado a divisão de verbas e sim a uma atuação política que foi construída durante três décadas. A situação está ligada a incompetência e a famigerada política ideológica de aparelhamento do Estado.

Com relação as hepatites virais, vale lembrar que o governo foi capaz de enviar medicamento de hepatite C há um mês do vencimento. Foi uma irresponsabilidade jamais vista nos últimos ano. Vidas  foram colocadas em risco para encobrir o desastre que está vivendo a saúde pública.

É importante lembrar que muitos ativistas e mesmos profissionais da saúde que construíram a luta contra a aids no Brasil, hoje assiste o trabalho caminhando para o escuro esgoto da ignorância e do conservadorismo.

Todas estas questões não foram discutidos, os verdadeiros segmentos que representam a luta contra aids talvez não tiveram o contraponto, mas temos que resistir a essa brutal violência. É preciso resistir às atitudes deste governo nestes 100 dias ou estaremos fadados a cair em um anonimato onde nossas vozes serão caladas e o verdadeiro ativismo será esmagado pela máquina governamental, atingindo os direitos fundamentais das pessoas vivendo com HIV e outras patologias.

* José Araújo Lima Filho é ativista e presidente do Epah (Espaço de Prevenção Humanizada).