Luís Corrêa Lima

A viagem do papa Bento 16 à África foi marcada por uma enorme polêmica. Na ida, em entrevista concedida a jornalistas no avião, ele disse que a epidemia da aids naquele continente não se resolve com a distribuição de preservativos. Ao contrário, o problema aumenta. Somam-se a isto declarações da hierarquia católica contra propagandas governamentais para difusão da camisinha, alegando que favorecem a permissividade sexual. Configura-se assim uma imagem da Igreja, bastante difundida, de inimiga feroz do preservativo. Será que a Igreja é mesmo esta inimiga? Convém fazer alguns esclarecimentos.

A declaração do papa na íntegra permite ver o contexto da afirmação. Bento 16 diz que não se pode superar o problema da aids só com dinheiro e distribuição de preservativos. É preciso que haja ‘alma’, que os africanos se ajudem assumindo responsabilidades pessoais para humanizar a sexualidade. Caso contrário o problema aumenta. A ‘humanização da sexualidade’ inclui um novo modo de relacionar-se mutuamente, com um comportamento justo em relação ao próprio corpo e ao corpo do outro.

A razão desta declaração pode ser encontrada no relato de missionários que vivem nas regiões africanas mais atingidas pelo HIV. Na área rural da Suazilândia, o país com a maior taxa de infectados (26%), uma missionária testemunha: “Aqui, a primeira coisa que um homem te diz é que não usará camisinha. E a mulher tem a condição de menor de idade, assim que nunca a exigirá”. Há resistências culturais. Na África a fertilidade é elogiada, e o preservativo aparece como estranho e estrangeiro, bem como os valores que encarna. Ele é mais do que um pedaço de borracha, ainda que bem aceito na Europa e na América.

Nesta situação, não adianta a mera distribuição de preservativo sem um comportamento justo para com o próprio corpo e o corpo alheio. Ainda que não a tenha mencionado, o papa não exclui a camisinha. No dia seguinte à declaração, o porta-voz da Santa Sé informou que para a Igreja a prioridade na prevenção da aids é a educação, a pesquisa e a assistência humana e espiritual, e não a opção exclusiva pela difusão do preservativo.

Em todo o mundo, estima-se que um quarto das organizações humanitárias dedicadas aos portadores de HIV são ligadas à Igreja Católica. Esta assistência não exclui o preservativo. Em 2001, os jesuítas africanos lançaram uma campanha em favor do seu uso, com o lema: “A aids mata, protege-te e protege aos demais”. A congregação dos padres brancos na Tanzânia e os bispos do Chade aderiram à difusão da camisinha. Em 2005, o conselheiro teológico particular do papa – cardeal Georges Cottier, da Casa Pontifícia – abordou esta questão. Ele declarou que em algumas circunstâncias o uso da camisinha é legítimo, sobretudo em epidemias generalizadas e devastadoras, como é o caso da África. Aí vale o mandamento de ‘não matar’ e se deve respeitar a defesa da vida acima de tudo. Vários religiosos africanos, aberta ou veladamente, adotam esta posição.

O cardeal Dionigi Tettamanzi, arcebispo de Milão, afirmou que em caso de contágio no casamento, a mulher tem o direito de exigir o preservativo por parte do marido. Este direito é importantíssimo na África e também no Brasil, onde milhares de mulheres casadas monogâmicas são contaminadas por não exigirem de seus maridos o uso do preservativo.

É do senso comum dizer que o papa condena a camisinha. Mas desde que assumiu o pontificado, Bento 16 nunca a condenou. Convém analisar com atenção. Em 2005, ele recebeu bispos africanos em audiência, e lhes disse que o ensinamento tradicional da Igreja é o único caminho intrinsecamente seguro para se evitar o vírus HIV. Difundiu-se então a notícia de que o papa condenou a camisinha. Ora, defender uma conduta sexual baseada no autodomínio e na fidelidade, não significa necessariamente opor-se ao preservativo. A mesma notícia se repetiu quando Bento 16 defendeu a carta de Paulo 6º, Humanae Vitae, contrária aos métodos artificiais de controle da natalidade. Mas isto não significa opor-se ao uso da camisinha para prevenir doenças sexualmente transmissíveis. A distinção é sutil mas não desprezível.

Nesta viagem à África, o papa esteve em um centro católico de reabilitação em Camarões, onde se encontrou com enfermos. Aí ele encorajou a Igreja a prosseguir na luta eficaz contra a aids, a tuberculose e a malária – uma obra urgente. Aos médicos e pesquisadores, exortou a realizar tudo o que é legítimo para aliviar a dor, cabendo-lhes em primeiro lugar a proteção das vidas humanas.

A legitimidade do preservativo foi claramente afirmada pelo Vaticano através de seu jornal, L’Osservatore Romano. No dia 22 de março, foi publicada uma entrevista com o médico e missionário comboniano Daniele G. Giusti, que trabalha em Uganda há três décadas. Ele afirma que a camisinha se mostra eficaz entre pessoas homossexuais, usuários de drogas e profissionais do sexo. Para o conjunto da população, recomenda-se o modelo ABC (‘Abstinence, Be faithful and Condoms’): abstinência aos que ainda não são maduros para a vida sexual, fidelidade conjugal aos sexualmente ativos e camisinha como terceiro recurso, onde há risco de contaminação. Na educação sexual, é necessário ensinar o que comporta risco, o que o reduz e o que o elimina.

Assim se delineia um caminho de conciliação entre a moral cristã e a distribuição do preservativo. Políticas públicas de prevenção e convicções religiosas podem conviver e colaborar mutuamente. Para isto é necessário desfazer ruídos de comunicação que se tornaram enormes. O papa e a Igreja Católica não são inimigos ferozes da camisinha, e a difusão desta não é incompatível com os valores cristãos, sobretudo o amor e a responsabilidade. A defesa da vida terá muito a ganhar.

Luís Corrêa Lima é padre jesuíta e professor da PUC-RJ.