– O Brasil está nu! – gritou a criança ingênua.

E, assim como no conto de Hans Andersen, o mundo viu que o Brasil não é aquele país liberal e respeitoso com as diferenças que muitos acreditavam existir. O alfaiate que teceu a roupa do rei fez aflorar o verdadeiro Brasil, velho conhecido das minorias, dos negros e das mulheres e agora também de Judith Butler e Roger Waters. Um país cujo povo acaba de eleger um presidente machista, racista e LGBTfóbico que não vê obrigação estatal em custear o tratamento de pessoas que vivem com HIV, que acha que o SUS recebe dinheiro demais e que declara em alto e bom som que irá acabar com o ativismo no país. A luta contra a epidemia de aids, que já enfrentava sérios desafios e colecionava indicadores nada confortáveis, agora vê ameaçada tanto sua estrutura como o próprio espírito que a move, que é a participação ativa das ONGs e redes de pessoas com HIV no desenho do combate à epidemia.

As várias e polêmicas declarações do então candidato Jair Bolsonaro encontrarão eco no Congresso Nacional mais conservador da história, que teve um considerável crescimento das bancadas ligadas à segurança pública e a denominações cristãs, aumentando em muito a dificuldade de se efetuar a prevenção a novas infecções pelo HIV sob um aspecto técnico. Basta lembrar a censura promovida pela bancada evangélica a excelentes publicações voltadas a jovens no ano de 2011 e que se perpetuou como o infame kit gay, um dos principais combustíveis para o resultado das eleições. Se em um governo de esquerda, tradicionalmente mais próximo dos movimentos populares, houve esse tipo de retrocesso, é de se temer até mesmo a volta do criacionismo como disciplina escolar, jogando no lixo os projetos de aids nas escolas, Escola sem Homofobia, dentre outras ações. A oração evangélica no discurso de posse foi bastante significativa, deu o tom que o governo adotará nas questões sociais.

Uma delas, que deverá ser tratada com urgência, será acelerar o trâmite da PEC que permite ao Congresso Nacional rever ou sustar decisões do STF e, com isso, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por esses casais estaria na mira dos religiosos de plantão. Assim como o retrocesso na dignidade das populações trans, uma vez que vários direitos recentemente adquiridos podem virar poeira com mais facilidade, uma vez que dependem de resoluções ministeriais, quem sabe assinadas pelo futuro ministro Alexandre Frota. A já declarada intenção de acabar com a tipificação do ‘feminicídio’ também demonstra que a questão de gênero, cuja ‘ideologia’ é tão combatida pelo poder ora instalado, será um grande entrave para a prevenção entre essa população, especialmente as jovens, como também na assistência de mulheres vivendo com HIV e suas peculiaridades frente à epidemia.

Duas de suas promessas de campanha soam particularmente ameaçadoras para a luta contra a epidemia, sendo a primeira delas a de acabar com o ativismo. Ora, a essência da luta contra a aids no Brasil é e sempre foi a participação ativa das pessoas vivendo com HIV, através de sua Rede Nacional e estaduais, e das ONGs que atuam no controle social das políticas públicas em saúde e, sem o apoio a sua estrutura, a luta contra a epidemia perderá a hemoglobina que a oxigena. A segunda toca diretamente a este que escreve estas linhas, a de que o Estado não tem a obrigação de custear o tratamento de quem ‘pegou aids na vadiagem’. Muitos dizem que o governo não pode fazer isso, mas quem acompanhou a elaboração de nossa atual constituição lembra a dificuldade que foi inserir na Carta Magna a expressão ‘a Saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado’. Temos ouvido recentemente várias declarações de gestores e políticos questionando a integralidade e universalidade do SUS que, aliadas à contundente fala do presidente eleito, nos faz temer pelo futuro da assistência integral à saúde das pessoas que vivem com HIV e aids no Brasil e, por consequência, pelo futuro de nossas vidas.

O Brasil ficou nu e todo mundo viu. A BBC, a CNN e o NY Times também viram.

Espero que os olhos do mundo se fixem no Brasil e zelem por nós, pois se depender do liberalismo e respeito de seu povo, a luta contra a aids e a vida das pessoas com HIV são apostas de baixo valor em um tabuleiro onde o peão acha que é bispo, o bispo pensa que é o rei e o rei tem certeza que é um mito.

Eu tenho medo.

*Beto Volpe é ativista independente, escritor e vive com HIV há 29 anos.