Em janeiro de 1990, dois meses após o diagnóstico reagente para o HIV, fui cheio de esperanças fazer minha primeira perícia médica junto ao INSS, afinal, era no pessoal de jaleco que eu deveria apostar minhas poucas fichas. Ao ser chamado no consultório entrei todo sorridente e estendo minha mão em cumprimento, ao que o doutor exclamou, visivelmente nervoso:

– Não! Não! Atrás da linha amarela, por favor!!!

Eu nem havia reparado na tal linha amarela a dois metros da mesa do médico perito, distância mínima permitida para a perícia de pessoas com HIV. Isso já faz trinta anos e é de estarrecer que, ainda hoje, o estigma e o preconceito contra as pessoas que vivem com HIV/aids ainda esteja presente em nossa sociedade. Pior ainda, ele é disseminado em unidades de saúde e em faculdades de medicina, como no recente caso em que futuros médicos do Espírito Santo revelaram a sorologia positiva de um colega de turma.

O Estudo Stigma Index, divulgado ontem pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), na sede da Organização Panamericana de Saúde, entrevistou 1784 pessoas com HIV e apontou que 15,3% haviam sofrido discriminação por parte de profissionais de saúde através de atitudes como esquiva de contato físico e revelação do diagnóstico sem consentimento. Quando se faz o recorte da população de trans e travestis, esse percentual sobe para 90,3%, dado que revela a gritante transfobia existente no setor da Saúde que, aliada à aidsfobia, é fator de abandono de tratamento e de qualquer perspectiva de cidadania. Até hoje, e isso é sabido por qualquer pessoa que atue na ponta da luta conta a epidemia, doutores ainda brincam na primeira consulta após o diagnóstico:

– Perdeu, hein, playboy?

– Se ferrou, e agora?

– Pisou na bola, né?

É preciso que tanto as três esferas governamentais quando as instituições acadêmicas e entidades médicas se posicionem sobre esse estudo e, mais que isso, que tomem atitudes coordenadas para extirpar o câncer do preconceito da saúde pública. Maus profissionais e más práticas de atendimento às vezes causam mais mal do que o próprio vírus que é a raiz de toda essa história. Não podemos mais tolerar que linhas amarelas separem as pessoas com HIV do restante do mundo, é hora de romper todas as linhas e tornar este mundo em um lugar melhor para se viver, com ou sem HIV.

 

Beto Volpe, Radical livre e escritor